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há mar em mim

17
Mar17

António Lobo Antunes

C.S.

Ganhou o prémio Vida e Obra da Sociedade Portuguesa de Autores. Os seus contos são dos textos mais incríveis que já li, tão humanos, tão reais, tão apaixonantes, tão crus.

Um homem com uma obra incrível, que cada vez mais me parece consumido pela saudade, que tem uma vida cheia, que já teve de superar tanto, mas que espero que continue a escrever para nós, que continue por cá muitos e bons anos.

Vejam esta vídeo, vejam o final digno de um dos seus contos, ele próprio disse que não sabe bem onde acaba a sua vida e começa a sua obra. Creio que aqui também se fundiram.

 

 

17
Mar17

O Carlos

C.S.

Hoje o dia amanheceu noturno.

A cidade parece ainda dormir, a sua respiração tranquila e ritmada confirma-o.

Só ao longe se acendem luzinhas num prédio distante. Numa manhã fria e escura, como esta, tudo se torna mais lento e arrastado.

Ele olha pela janela e estremece. Não, ainda não será hoje que sai de casa. Respira fundo, passa a mão pelo cabelo e lembra-se que ontem deveria tê-lo lavado, mas não teve coragem suficiente para se arrastar até à casa de banho. E a porra do esquentador não aquece a água como deve ser.

Como chegou aqui? Como permitiu que a sua vida desmoronasse? Como é que ainda consegue ir espreitar à janela?

Sente-se inútil. Todos os dias a história se repete e todos os dias ele sente-se um pedaço de merda.

Carlos tem 27 anos, um jovem, diriam muitos, mas ele sente-se mais próximo dos 72. No último ano sente que envelheceu décadas e, no entanto, não ganhou qualquer sabedoria com isso, antes pelo contrário, sente-se mais confuso e mais perdido que em qualquer outra fase da sua vida. Gostava de poder voltar a ter 12 anos, onde a sua única preocupação consistia em decidir se queria lanchar um bolicao ou um donut.

Ele que queria conhecer o mundo e que ambicionava namorar o maior número de mulheres possível deixou-se enfeitiçar por ela, por a sabedoria dos seus 46 anos, pelas noites tórridas que lhe proporcionou, pela sua elegância e pela forma que o prendia com o olhar quando falava. A sua boca parecia dizer-lhe sempre mais do que ele escutava.

Carlos, apaixonou-se. Pareceu-lhe cliché, na altura, mas não quis saber. Nunca tinha sentido nada assim, a adrenalina era muito maior do que aquela que havia experimentado nas várias montanhas russas por onde andou. Ele não a poderia perder. Ele, um miúdo, tinha conseguido entrar na vida da mulher mais bonita e sensata que alguma vez conhecera. Isto era o que ele pensava.

Os amigos de Carlos achavam que ele estava enfeitiçado, que não via o mesmo que eles viam e, ao início, verdade seja dita, acharam graça à cota. Gostaram de ver o amigo a papar a velha, mas com o tempo perceberam que ela o estava a transformar, que ele se afastava cada vez mais e raramente se deixava ver e, nas raras ocasiões em que ainda lhes fazia companhia não largava o telemóvel, passando as horas a dar-lhe explicações sobre tudo aquilo que poderia ou não poderia estar a fazer.

Os amigos começaram a dizer a Carlos para se afastar dela, mas só o conseguiram perder ainda mais.

Carlos casou com ela, sem festa, sem família, sem amigos. Disse-lhe que sim a ela e às sua dívidas, aos filhos que não sabia que ela tinha e ao negócio da droga que ela geria. Tudo em comunhão de bens, claro está. Tudo sem que ele soubesse, pelo menos, da ponta do icebergue.

Um dia, por portas e travessas, Carlos descobriu que casara com uma mulher com identidade falsa e quando a confrontou com isso achou extraordinária a capacidade que ela teve para se manter serena. Discutiram, discutiram muito, mas na verdade foi Carlos quem gritou mais, contudo, deixou-se vencer pelo cansaço e pelo desejo louco que sempre sentira pelo corpo dela. Na manhã seguinte ela já não estava. Havia-se evaporado. Foi como se aquela mulher nunca tivera existido. Deixou-o completamente vazio, em todos os sentidos que sejam possíveis imaginar.

Carlos não sabia o que fazer. Sentia uma vergonha enorme por se ter deixado levar. E andava há dois meses a ganhar coragem para contar o que se passara a alguém. Mas a pergunta era a quem. Pois, ela tinha-o conseguido afastar de tudo e todos, como se o tivesse arrancado pela raiz da vida que antes tinha. Daquele rapaz alegre que ele fora.

 

(imagem aqui)

 

 

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