A Carlota
Carlota, tal como todos nós que por aqui andamos, não pediu para nascer e os seres que a conceberam tão-pouco sonharam algum dia com ela.
Nasceu fruto de um crime. Da maldade de um homem para com a sua mãe, mulher com problemas mentais, que a carregou nove meses e que que sempre precisou de terceiros para que a ajudassem a cuidar da filha.
Carlota faz hoje 40 anos. Tem uma família que ama. Ela, o marido e os filhos são felizes. Pessoas humildes que lutam diariamente por uma vida digna. Pelos filhos, para que nada lhes falte.
Carlota é serena, nada a faz perder a paciência. Conhece bem o seu passado, já que cedo exigiu aos avós que lhe fosse relatado. Nunca o esquece, mas não vive presa a ele.
Respeita e admira a mãe, acarinha-a e desde cedo compreendeu que os seus papéis rapidamente se inverteriam. Um dia quis olhar nos olhos do homem que esteve presente na sua conceção e conseguiu-o. Teve vontade de o matar, mas rapidamente compreendeu que ele apenas merecia o seu desprezo. Também teria merecido a prisão, há anos atrás, se os seus avós não tivessem receado apresentar queixa contra alguém influente da aldeia. Temeram que ninguém acreditasse no que havia ocorrido. Guardaram as dores, a revolta e a vergonha.
Carlota, se tinha algum tipo de sentimento por aquele homem, matou-o naquela manhã de finais de outubro em que o conheceu.
Aos seus filhos nunca contou a verdade, disse-lhes que o avô havia morrido quando ela tinha meses. Apenas o marido conhecia as suas verdadeiras feridas, aquelas que não admitia a ninguém.
(Imagem aqui)
Carlota faz hoje 40 anos e vê-se ao espelho, por momentos volta a sentir aquela dor que não sentia há vários anos, a dor de saber que não deveria ter nascido, mas a filha mais velha desperta-a dos seus pensamentos, aproxima-se, abraça-a e diz-lhe como ela está linda e acrescenta, enquanto a puxa por uma mão:
- Vem, o papá está à nossa espera, preparámos-te uma surpresa.