A Marta
22h35
Ouço a chuva, ao longe. Miúda. Ritmada.
Algo em mim estremece. Inspiro. Uma e outra vez e cada vez mais fundo e procuro afastar o pensamento que não me sai da cabeça.
Fecho os olhos, com força. Mas a imagem que vi não se dilui.
- Marta! Marta! Marta!...
Alguém chama por mim. Alguém que já deu pela minha falta. Sinal de que não resta muito tempo até que me encontrem. Obrigo o meu corpo a mover-se. Cambaleia. Concentro-me. Tenho de sair daqui. Afastar-me.
Começo a correr, nunca fui grande corredora, mas a adrenalina que sinto parece ajudar-me. Corro sem olhar para o que me rodeia, não sei para onde vou, mas sei exatamente do que fujo.
Sinto as mãos molhadas e sei que se olhar para elas estarão sujas de sangue.
00h30
A minha bebé está desaparecida. Passaram cerca de três horas desde que ela desapareceu, mas é impossível não pensar nos piores cenários.
A Marta. A minha Marta. Uma filha extremamente amorosa, uma aluna exemplar, querida por toda a comunidade escolar. Até aos 14 anos um sonho de menina. E depois tudo mudou. Deixei de a reconhecer. Ela própria foi-se abandonando aos poucos, até restar apenas uma sombra do que fora.
A minha Marta. Tem hoje 20 anos, a minha bebé.
Talvez a culpa seja nossa. Talvez seja minha, eu que sou a mãe, deveria ter compreendido mais cedo. Deveria ter lido os sinais. As mães deveriam estar aptas para captar este tipo de coisas.
- Júlia. Júlia!
01H12
A Marta está bem, por agora.
Foi levada para o hospital e os pais estão a ser aconselhados a deixá-la lá por alguns dias, quem sabe se não serão mesmo algumas semanas.
Dói-lhes entregar assim a filha, pois nunca antes estiveram sem ela, mas Júlia sabe que o que aconteceu hoje pode repetir-se. Sabe também que a Marta anda a fugir cada vez mais à medicação. Chora. Sente-se culpada e impotente. O marido abraça-a, também ele sem forças.
Ambos se recordam bem do dia em que a Marta foi diagnosticada com esquizofrenia. Foi há dois anos atrás. Num estranho e frio mês de março e a vida deles nunca mais foi a mesma.
Muitos dos seus sonhos ficariam por concretizar. Ficaram atónitos. Não aceitaram. Pediram uma segunda, terceira e quarta opinião. Todas iguais. A mesma sentença.
Eles que planearam a brilhante vida da sua bebé foram atirados de um precipício. Pelo menos era o que sentiam.
Todos os dias.
(Imagem aqui)