A Mariana
Mariana acordara cheia de dúvidas e medos. Desde as 4h da manhã que não conseguiu adormecer mais. Olhara o relógio quase de meia em meia hora, mas à noite, quando o sono foge de nós, o tempo arrasta-se. Sabia que o dia que tinha pela frente iria determinar muita coisa. Sabia, também, que os pais, sobretudo a mãe, deveriam estar tão ansiosos quanto ela e esse facto doía-lhe.
O que aconteceu no ano passado ainda estava bem presente, não só na sua memória, como no seu corpo. Só há bem pouco tempo havia sido capaz de começar a abrir-se com a sua psicóloga, que era uma mulher de olhar doce e pose muito reta, sempre atenta e afável.
Mariana sabia o que a havia colocado no fundo do poço, demorara a compreender tudo, a conseguir juntar todas as peças do puzzle, mas agora sabia. Contudo, ainda não tinha certezas de ter força para sair de lá, ainda que os médicos atestassem que estava a melhorar a olhos vistos.
Os pais mudaram-na de escola, na esperança de que o novo ano letivo, que hoje se inicia, representasse efetivamente um recomeço para a filha. Já não lhes importava o quadro de mérito, finalmente haviam compreendido que a saúde da filha era a sua prioridade e que a ambição que tinham, juntamente com a competitividade que lhes era tão característica, tinham contribuído, também, para o que acontecera.
A mãe entrou no quarto e chamou-a com carinho, sobressaltando-se ao ver que a filha não estava na cama. Mas ouviu a sua voz a responder-lhe da casa-de-banho. Beijou-a na testa quando esta reentrou no quarto, segurou-lhe na mão e perguntou-lhe com carinho se estava preparada.
- Sim, mãe. Vou-me vestir e desço já para o pequeno-almoço. - respondera a rapariga com tristeza na voz.
Comeram em silêncio e meteram-se no carro. O percurso até à escola foi preenchido por um monólogo incentivador por parte da mãe, Mariana ia-lhe respondendo com acenos de cabeça e monossílabos de assentimento, enquanto olhava pela janela do carro. Parecia-lhe que havia envelhecido 10 anos, que se havia convertido numa pessoa totalmente diferente e este regresso à escola estava a deixá-la com sentimentos contraditórios.
Despediu-se da mãe com um beijo rápido e começou a andar lentamente, mas ao estar em frente ao portão que dava acesso ao recinto escolar foi atingida por um comboio de memórias, como se estivesse a ler novamente todas as mensagens maldosas que circularam sobre si na internet, sentiu os pulsos a doerem-lhe, exatamente nos sítios onde ainda persistiam as marcas dos cortes que ela própria fizera e por fim, voltou a ter, por momentos, aquela dor lancinante que sentira ao tomar a caixa de antidepressivos que havia roubado da casa dos avós.Tudo havia terminado naquela tarde de maio, se o pai não se tivesse esquecido das chaves em casa.
Mariana fechou os olhos, tentou afastar tudo da sua cabeça e repetiu para si mesma que era uma escola nova, que ali ninguém conhecia a sua história, nem as suas fragilidades. Finalmente, ia iniciar o ano no curso de artes, o que sempre quis, onde os pais não a haviam deixado matricular-se no ano anterior.
Era um virar de página. Sem dúvida, aquele de que precisava.
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