A Francisca
As ruas são a sua casa. O chão frio a sua cama. A heroína a sua companheira inseparável.
Há 20 anos atrás era outra. Logicamente mais nova. Ligeiramente mais feliz.
Francisca nasceu em berço de ouro, que é como quem diz que teve a sorte de nascer no seio de uma família com posses financeiras, que nunca deixou que lhe faltasse nada, nem mesmo a Vespa que ela exigiu aos 14 anos, numa birra descomunal que marcou o dia em que soube que os pais se iriam divorciar.
Mimada por todos, sempre teve a capacidade de virar as atenções para si, mesmo quando eram os outros os que mais sofriam.
Mas a vida gosta de figuras de estilo, sobretudo da ironia e, quando a Francisca lutava para concluir a sua licenciatura, colocou-lhe no caminho o Tozé. Um namorado agressivo que rapidamente lhe dominou o espírito de menina mimada e a converteu numa sombra sua.
A Francisca que sempre tinha enfrentado os pais e exigido aquilo que julgava ser seu por direito, estava agora à mercê dos caprichos do Tozé, que era viciado em jogos de sorte e azar e que tratou, desde cedo, de iniciá-la nos meandros do mundo da droga, local que Francisca jamais conseguiria abandonar.
Aos 28 anos deu à luz pela primeira vez, num beco escuro, uma menina da qual não consegue recordar o pequenito rosto. Nasceu morta e Francisca deixou-a embrulhada em trapos velhos junto a um contentor de lixo. Nesse dia morreu o que lhe restava de humanidade e a partir desse momento toda a sua vida foi um contínuo declínio.
Prostitui-se para conseguir o dinheiro que os pais deixaram de lhe dar. E a última vez que se recorda de ver os progenitores foi há seis anos atrás, tinha Francisca 34 e procurou-os para lhes pedir ajuda, assustada porque lhe tinham dito que tinha HIV. Mas ao segundo dia de reabilitação agrediu dois enfermeiros e fugiu, deixando definitivamente a alçada paternal que nunca foi suficiente para a segurar.
Faz hoje quarenta anos, a Francisca, e estará morta antes das 22h, hora em que nasceu. Será brutalmente assassinada por o irmão mais novo do Tozé, após a violar uma e outra vez.