Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

há mar em mim

26
Out17

A C.S.

C.S.

Eu sou do Alentejo.

As planícies alentejanas serão para sempre uma paisagem à qual não consigo ficar indiferente. Tenho 31 anos, 7 dos quais passados no Algarve. O mar sempre fez parte de mim, ainda antes de tê-lo diariamente.

Provenho de uma família humilde. Os meus pais têm a 4.ª classe, como antigamente se dizia. São jovens. Estão ambos abaixo dos 55 anos. Foram eles que me ensinaram muito do que sei. Foram eles que me incutiram os valores que considero essenciais. Foram eles que me proporcionaram muitas das coisas que tenho.

A minha irmã partilha comigo muitos interesses, mas na generalidade somos muito distintas. Fomos o cão e o gato. Agora já somos mais a unha e a carne.

Sempre fui sociável e as pessoas reconhecem-me com facilidade por dois motivos: o sorriso e o cabelo. Tenho o choro fácil e a gargalhada mais fácil ainda.

Adoro a vida e todos os dias alimento novos sonhos. Sou genuinamente otimista, porque creio que viver com medo do que possa acontecer é uma tremenda perda de tempo. Mas tenho medos, como toda a gente.

Tive uma adolescência feliz. Conheci o amor na escola, mas só anos mais tarde é que o descobri verdadeiramente.

Casei e casava-me novamente, porque foi incrível e porque creio que o tempo nunca andou tão rápido como naquele dia 20.

Tenho amigas e tenho saudades delas. Vivem longe e estamos demasiado tempo sem nos ver.

Gosto de programas caseiros, mas nada me faz mais feliz que fazer a mala para ir a um lugar onde nunca estive.

Fascina-me o desconhecido e a surpresa da descoberta. O contacto com as pessoas e as suas vivências.

Não gosto de pensar que os melhores anos da minha vida foram os que já passaram.

Adoro gestos simples e pequenos momentos que se agarram à nossa memória para sempre.

Tenho mais respostas agora do que tinha há 10 anos, mas também tenho muito mais perguntas para as quais ainda não encontrei resposta. E está tudo bem.

(Imagem aqui)

 

16
Out17

O Dr. Guilherme

C.S.

Naquele início tarde, de um outono demasiado quente, Guilherme não imaginava o que lhe iria acontecer. Vinha de um agradável almoço com a sua filha mais velha, que iria casar-se no final do ano. Estava entusiasmado pela sua menina, que na verdade já era uma mulher deslumbrante e bem sucedida. Iria casar-se um ano depois de ter terminado o seu internato em pediatria. Um sonho tornado realidade. Desde muito cedo que a sua Lara quis seguir-lhe as pisadas no mundo da medicina, facto que sempre o encheu de orgulho.

 

Guilherme entrou no metro em passo apressado, verificando a sua agenda no smartphone, pois ainda o esperavam no consultório para cinco consultas e uma delas era com a sua paciente, grávida de gémeos, cuja tensão arterial o preocupavam.

 

Subitamente uma dor no peito. Lancinante. Soube de imediato do que se tratava e enquanto tentava racionalizar o que lhe estava a acontecer, o seu corpo começou a ceder, não conseguiu avançar muito mais, a dor cada vez maior e mais real. O seu corpo de 1,86m caiu ao chão. Os olhos fixos no teto daquela paragem de metro que fazia parte do seu dia-a-dia.

 

Pensou no casamento da filha e na dor que lhe causaria se não a pudesse acompanhar ao altar. Pensou no amor da sua vida, a mulher com quem partilhava a sua vida há quase quarenta anos. Queria tanto puder vê-la uma última vez, sentir o seu cheiro e acariciar os seus cabelos. Pensou no seu Tiago a viver sozinho pela primeira vez e logo num país estrangeiro. Queria visitá-lo de surpresa no início de dezembro, mas talvez não o voltasse a ver.

 

De repente sente umas mãos a comprimir-lhe o peito, uma e outra vez, uma e outra vez, ritmadas, enquanto ouve uma voz desesperada que lhe pede para se aguentar. Guilherme gostava de poder acalmar aqueles olhos verdes que se debruçam sobre ele e que lhe parecem estranhamente familiares. Tão bonitos. Tão puros. Tão tristes.

 

Antes de desmaiar compreende... Lamentavelmente, compreende que é a sua filha, a sua pequena Lara que no chão do metro, lavada lágrimas, faz os impossíveis para o agarrar à vida. Desculpa, Lara.

IMG_2874.jpg

(A magnífica foto que inspirou este conto é da autoria do João Freitas Farinha. É uma obra de arte, não é? Estes tons de preto e branco fascinam-me. Obrigada, João.)

 

03
Out17

O Bernardo

C.S.

Sou o Bernardo e sinto-me desconfortável quando olham diretamente para mim. Nunca pensei ter de recorrer a um psicólogo, mas aqui estou. Bastante cético quanto ao bem que isto me possa fazer... Na verdade, venho mais pelas pessoas que me pediram para o fazer do que por mim. 

 

Olho o relógio. São 16:30. A esta hora deveria estar a preparar-me para deixar o escritório e ir buscar o meu filho à escola. Baixo a cabeça e um vazio enorme apodera-se de mim. As mãos tremem-me. Tenho 43 anos e as mãos tremem-me e eu não compreendo nada do que se passa à minha volta.

 

Sei que a esta hora a minha mulher está em casa. Provavelmente a sentir-se perdida, como eu, mas não o posso garantir. Há meses que praticamente não falamos. Somos dois fantasmas presos dentro da nossa própria casa. Uma moradia. Virada a sul, com três quartos, grandes janelas e uma piscina. Tal como ela sempre quis.

 

Tudo me parece distante agora. Comprámos aquela casa há 10 anos, quando fui promovido, dois anos antes do José nascer e, no entanto, aquela casa e os sonhos de então parecem ter pertencido a outras pessoas que não nós. 

 

Envelheci imenso nos últimos meses. A Paula também. Deixei o ginásio, perdi peso, clientes e a vontade de viver. Ainda gosto da Paula, mas não sabemos como nos encarar. Não sabemos como conviver. Há dúvidas e rancor no ar. Há meses que durmo no sofá do escritório, não que ela me tenha pedido, mas foi algo que senti que devia fazer. 

 

A dor consome-nos. Os dias passam e parecem sempre iguais, ainda que uns dias fiquemos deitados até à hora de almoço. Não por sono. Não por preguiça. Simplesmente porque não sabemos o que fazer quando colocarmos os pés no chão. 

 

Sei que a Paula deverá estar a viver sentimentos idênticos aos meus. Sei que também ela se consome, mas não encontramos forma de nos olhar e tentar compreender. Não há nada que possamos compreender neste enorme absurdo que se tornou a nossa vida. 

 

Tenho 43 anos e tive um filho. Houve um tempo em que tive um filho. José. 8 anos. Terá para sempre oito anos o meu filho. Passaram-se meses desde que o abracei pela última vez. Era o miúdo mais bem disposto que conheci até hoje. Adorava animais, o Benfica e o espaço, sabia mais que eu sobre planetas e constelações. Sonhava muito, mas reparava no mundo à sua volta. 

 

Um dia acordei pai e a Paula acordou mãe. Uma manhã igual a tantas outras. Fomos trabalhar e ele foi para a escola. Ao fim do dia eu e a Paula já não éramos pais. Éramos uma sombra do que fôramos. 

(Imagem aqui

E nada disto faz sentido. O mundo avança e não deveria avançar. Não sem ele. Não sem justiça. 

 

19
Set17

A Adelaide

C.S.

Adelaide deixa-se cair sobre a cama, exausta, ainda com os sapatos de salto calçados, que hoje parecem ser feitos de chumbo. O seu minúsculo T1 está em absoluto silêncio, não se ouvem as correrias dos miúdos que vivem no andar de cima, nem as discussões conjugais que lhe chegam, todos os dias, vindas do 2.º esquerdo. 

Fecha os olhos e tenta recuperar as forças. Quase que adormece, mas subitamente põe-se de pé. Quebrou, por momentos, a sua própria regra: não se aproximar da sua cama com roupas vindas da rua, sobretudo se chega do trabalho. 

Agora terá de limpar todo o quarto e mudar os lençóis, claro está. Amaldiçoou-se por ter sido descuidada, mas conhece-se suficientemente bem para saber que se não proceder àquela limpeza não conseguirá dormir.

"Como pode ser irónica a vida..." - pensa, enquanto vai puxando a colcha e depois os lençóis.

Adelaide mete mãos à obra, sem vontade, mas com determinação. Não tarda o seu T1 estará a brilhar.

Não tem orgulho no que faz para ganhar a vida, por isso não deixa que as impurezas do exterior contaminem o seu espaço. Razão pela qual estabeleceu regras para si própria. Sempre que chega a casa troca de roupa, mas não sem antes tomar um banho demorado, esfregando todas as partes do seu corpo, como se estivesse a proceder a uma desinfestação. 

Já deixou de se martirizar pelo que faz. Aprendeu a aceitar o seu destino. Mas ainda lhe custa. Todos os dias lhe custa, ainda que o seu rosto já não o deixe transparecer. 

Agarra-se aos seus sonhos. À ideia de um dia poder voltar aos estudos, formar-se e começar do zero. Tem 23 anos e começou a trabalhar aos 16. Fugiu da casa onde era maltratada todos os dias, pelo padrasto, sem que a mãe fizesse qualquer esforço para o controlar. Julga que nunca a terão procurado, facto que, ainda que lhe tenha doído ao início, se revelou um alívio. 

Viveu nas ruas. Mendigou algum tempo e sentiu-se a pior pessoa do mundo, até que um dia a Dona Ritinha a encontrou. Ofereceu-lhe sopa quente e uma cama, algumas roupas novas e conhecimentos sobre como deveria aproveitar melhor o seu corpo.

Na noite seguinte começou a trabalhar. O seu primeiro cliente foi um sexagenário endinheirado, que cheirava a vinho e que tinha um dente de ouro. 

Adelaide não se recorda do nome dele, mas ainda hoje tem pesadelos com aquele homem. Depois de se ter entregue a ele, de se deixar usar por duas vezes, num estado de semiconsciência, ele deixou-a na mesma cama velha onde Ritinha a tinha mandado "tratá-lo com carinho, pois era um cliente habitual" e desapareceu. Ela ficou a sentir-se suja, pegajosa e malcheirosa. Chorou toda a noite e compreendeu, naquele momento, o significado da palavra solidão. 

A partir daí soube que estava completamente por sua conta e risco. Que tinha de cuidar de si, já que mais ninguém o faria. Continuou a vender o corpo porque ganhava um bom dinheiro, mas nunca deixou de lhe custar, simplesmente aprendeu a viver com isso. Foi traçando pequenos planos para si. Trabalhando para atingir pequenas metas. 

Conseguiu sair da casa da Dona Ritinha, que lhe ficava com 75% do que ganhava. Dividiu um quarto com uma colega de profissão durante algum tempo, depois conseguiu ter um quarto só para si e hoje vive no seu T1, que mantém impecavelmente limpo.

Sonha cada vez mais e melhor para si. Apesar de se sentir cada vez mais cansada. 

(Imagem aqui)

11
Set17

A Mariana

C.S.

Mariana acordara cheia de dúvidas e medos. Desde as 4h da manhã que não conseguiu adormecer mais. Olhara o relógio quase de meia em meia hora, mas à noite, quando o sono foge de nós, o tempo arrasta-se. Sabia que o dia que tinha pela frente iria determinar muita coisa. Sabia, também, que os pais, sobretudo a mãe, deveriam estar tão ansiosos quanto ela e esse facto doía-lhe.

O que aconteceu no ano passado ainda estava bem presente, não só na sua memória, como no seu corpo. Só há bem pouco tempo havia sido capaz de começar a abrir-se com a sua psicóloga, que era uma mulher de olhar doce e pose muito reta, sempre atenta e afável.

Mariana sabia o que a havia colocado no fundo do poço, demorara a compreender tudo, a conseguir juntar todas as peças do puzzle, mas agora sabia. Contudo, ainda não tinha certezas de ter força para sair de lá, ainda que os médicos atestassem que estava a melhorar a olhos vistos.

Os pais mudaram-na de escola, na esperança de que o novo ano letivo, que hoje se inicia, representasse efetivamente um recomeço para a filha. Já não lhes importava o quadro de mérito, finalmente haviam compreendido que a saúde da filha era a sua prioridade e que a ambição que tinham, juntamente com a competitividade que lhes era tão característica, tinham contribuído, também, para o que acontecera.

 

A mãe entrou no quarto e chamou-a com carinho, sobressaltando-se ao ver que a filha não estava na cama. Mas ouviu a sua voz a responder-lhe da casa-de-banho. Beijou-a na testa quando esta reentrou no quarto, segurou-lhe na mão e perguntou-lhe com carinho se estava preparada.

- Sim, mãe. Vou-me vestir e desço já para o pequeno-almoço. - respondera a rapariga com tristeza na voz.

 

Comeram em silêncio e meteram-se no carro. O percurso até à escola foi preenchido por um monólogo incentivador por parte da mãe, Mariana ia-lhe respondendo com acenos de cabeça e monossílabos de assentimento, enquanto olhava pela janela do carro. Parecia-lhe que havia envelhecido 10 anos, que se havia convertido numa pessoa totalmente diferente e este regresso à escola estava a deixá-la com sentimentos contraditórios.

Despediu-se da mãe com um beijo rápido e começou a andar lentamente, mas ao estar em frente ao portão que dava acesso ao recinto escolar foi atingida por um comboio de memórias, como se estivesse a ler novamente todas as mensagens maldosas que circularam sobre si na internet, sentiu os pulsos a doerem-lhe, exatamente nos sítios onde ainda persistiam as marcas dos cortes que ela própria fizera e por fim, voltou a ter, por momentos, aquela dor lancinante que sentira ao tomar a caixa de antidepressivos que havia roubado da casa dos avós.Tudo havia terminado naquela tarde de maio, se o pai não se tivesse esquecido das chaves em casa.

Mariana fechou os olhos, tentou afastar tudo da sua cabeça e repetiu para si mesma que era uma escola nova, que ali ninguém conhecia a sua história, nem as suas fragilidades. Finalmente, ia iniciar o ano no curso de artes, o que sempre quis, onde os pais não a haviam deixado matricular-se no ano anterior.

Era um virar de página. Sem dúvida, aquele de que precisava.

(Imagem aqui)

 

Mais sobre mim

foto do autor

Subscrever por e-mail

A subscrição é anónima e gera, no máximo, um e-mail por dia.

Direitos de Autor

Todos os textos contidos neste blog, regra geral, são da minha autoria e, caso não sejam, serão devidamente identificados. Qualquer reprodução de um texto aqui publicado só poderá ser feita mediante a minha autorização. Para qualquer contacto ou esclarecimento adicional: hamaremmim@gmail.com Obrigada

Arquivo

  1. 2023
  2. J
  3. F
  4. M
  5. A
  6. M
  7. J
  8. J
  9. A
  10. S
  11. O
  12. N
  13. D
  14. 2022
  15. J
  16. F
  17. M
  18. A
  19. M
  20. J
  21. J
  22. A
  23. S
  24. O
  25. N
  26. D
  27. 2021
  28. J
  29. F
  30. M
  31. A
  32. M
  33. J
  34. J
  35. A
  36. S
  37. O
  38. N
  39. D
  40. 2020
  41. J
  42. F
  43. M
  44. A
  45. M
  46. J
  47. J
  48. A
  49. S
  50. O
  51. N
  52. D
  53. 2019
  54. J
  55. F
  56. M
  57. A
  58. M
  59. J
  60. J
  61. A
  62. S
  63. O
  64. N
  65. D
  66. 2018
  67. J
  68. F
  69. M
  70. A
  71. M
  72. J
  73. J
  74. A
  75. S
  76. O
  77. N
  78. D
  79. 2017
  80. J
  81. F
  82. M
  83. A
  84. M
  85. J
  86. J
  87. A
  88. S
  89. O
  90. N
  91. D