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há mar em mim

12
Dez17

A Margarida

C.S.

Eram seis da manhã e era inverno. O despertador tocou alto e pontual. Margarida esticou o braço e desligou-o mecanicamente. Nunca lhe apetecia sair da cama, sobretudo no inverno. Mas hoje era um dia diferente e de um salto colocou-se em pé, arrastou-se energicamente para o duche, que tinha sempre a capacidade de a despertar, se bem que hoje ela não necessitava desse apoio suplementar. Como era contraditória a vida!

Na cozinha preparou uma deliciosas papas de aveia, pequeno-almoço que era habitual aos sábados de manhã e não às quintas-feiras, que era o presente dia da semana. Margarida estava animada, cantarolava sem reparar e sentia uma energia diferente a percorrer-lhe o corpo. 

Nunca imaginou que demitir-se e mandar tudo às urtigas a deixaria tão feliz. Ela que sempre fora uma trabalhadora dedicada e exemplar achou que a sua decisão a colocaria infeliz, pelo menos durante os dois primeiros dias. Mas ali estava ela, feliz da vida, com um sorriso de orelha a orelha. 

Era hora de empacotar. Tinha de colocar a sua vida em caixas. Não sabia bem por onde havia de começar, mas estava determinada em deixar grande parte do apartamento limpo ainda hoje. Mal podia esperar pela próxima segunda-feira, aí sim, a aventura iria mesmo começar. 

Margarida decidiu começar pelo escritório, afinal tinha deixado o seu emprego, que em tempos fora de sonho, portanto teria muitos papéis para rasgar e reciclar.

Passada uma hora deu de caras com uma caixa de cartão rígido, tamanho médio, cinzenta com pequenas florinhas amarelas. Margarida sentiu o seu coração amolecer, as pernas tremeram-lhe ligeiramente e um sorriso doce desenhou-se na sua cara, enquanto pegava na caixinha com todo o cuidado e amor. Pousou-a no tapete e, de joelhos, deu início a um regresso ao seu passado, aos seus tempos de menina adolescente e encontrou por lá tudo aquilo de que se lembrava e um pouco mais. Sentiu-se grata pelas pessoas que habitaram o seu passado, mesmo aquelas que já não via. Sabia que se havia tornado na adulta que era devido às vivências que guardou na sua caixa. Tantas memórias! Mas não as podia levar com ela para a sua nova vida, por isso ligou à sua melhor amiga. Ninguém melhor que ela para guardar aquela relíquia. Combinaram encontrar-se dentro de dois dias para um lanche demorado. Margarida sabia que ela não ia reagir bem à sua decisão, mas encolheu os ombros e bebericou mais um pouco do chá que estava pousado na sua secretária. 

Senti-se viva, genuinamente feliz e nada a poderia deter. Pensou em Enzo, o amor da sua vida. Italiano. Haviam-se conhecido uns meses antes, numa viagem de um mês que Margarida fez sozinha por Itália. Já não imaginava a sua vida sem ele e por isso arrumava-a agora para se mudar para Florença. 

Margarida pensava nos seus planos quando o seu smartphone tocou. Eram 10:30h. Mais uma hora em Itália. Enzo. Sorriu.

E nada na sua vida a havia preparado para a dor que aquela chamada lhe causaria. 

 

(Imagem aqui

29
Nov17

A Francisca

C.S.

As ruas são a sua casa. O chão frio a sua cama. A heroína a sua companheira inseparável. 

Há 20 anos atrás era outra. Logicamente mais nova. Ligeiramente mais feliz. 

Francisca nasceu em berço de ouro, que é como quem diz que teve a sorte de nascer no seio de uma família com posses financeiras, que nunca deixou que lhe faltasse nada, nem mesmo a Vespa que ela exigiu aos 14 anos, numa birra descomunal que marcou o dia em que soube que os pais se iriam divorciar. 

Mimada por todos, sempre teve a capacidade de virar as atenções para si, mesmo quando eram os outros os que mais sofriam. 

Mas a vida gosta de figuras de estilo, sobretudo da ironia e, quando a Francisca lutava para concluir a sua licenciatura, colocou-lhe no caminho o Tozé. Um namorado agressivo que rapidamente lhe dominou o espírito de menina mimada e a converteu numa sombra sua. 

A Francisca que sempre tinha enfrentado os pais e exigido aquilo que julgava ser seu por direito, estava agora à mercê dos caprichos do Tozé, que era viciado em jogos de sorte e azar e que tratou, desde cedo, de iniciá-la nos meandros do mundo da droga, local que Francisca jamais conseguiria abandonar. 

Aos 28 anos deu à luz pela primeira vez, num beco escuro, uma menina da qual não consegue recordar o pequenito rosto. Nasceu morta e Francisca deixou-a embrulhada em trapos velhos junto a um contentor de lixo. Nesse dia morreu o que lhe restava de humanidade e a partir desse momento toda a sua vida foi um contínuo declínio.

Prostitui-se para conseguir o dinheiro que os pais deixaram de lhe dar. E a última vez que se recorda de ver os progenitores foi há seis anos atrás, tinha Francisca 34 e procurou-os para lhes pedir ajuda, assustada porque lhe tinham dito que tinha HIV. Mas ao segundo dia de reabilitação agrediu dois enfermeiros e fugiu, deixando definitivamente a alçada paternal que nunca foi suficiente para a segurar. 

Faz hoje quarenta anos, a Francisca, e estará morta antes das 22h, hora em que nasceu. Será brutalmente assassinada por o irmão mais novo do Tozé, após a violar uma e outra vez. 

 

20
Nov17

A Dona Celeste

C.S.

A Dona Celeste passa os dias à janela. Em terra de pescadores ela tem vista privilegiada para a azáfama da vila. 

Tem setenta e quatro anos e é hipocondríaca, mas não sabe. Às vizinhas diz que está sempre pior, que já não passa cá outro Natal. Ao final da tarde entretém-se a ver os homens a preparar os barcos para mais uma lide noturna e madruga todos os dias para os ver chegar com o peixe. Entre uma atividade e outra vai espreitando os namoricos dos mais novos, vai controlando a quantidade de vezes que as vizinhas saem de casa e vai vendo quem entra e sai do café da esquina. Sabe de cor os que não resistem ao chamamento do álcool, os que só vão comprar tabaco e os que não se perdem em vícios. 

Lava a roupa à sexta-feira, na máquina que o filho lhe comprou no aniversário passado, mas tem sempre algum pano para esfregar no tanque do seu quintalinho.

Às terças-feiras, de quinze em quinze dias, vai sempre visitar a sua médica de família, que lhe diz, de todas as vezes, que ela tem uma saúde de ferro. "Parece que gosta de gozar com a desgraça alheia" - pensa sempre a dona Celeste quando deixa o gabinete da médica - "Um dia hei de morrer e há de arrepender-se dessas palavras", completa o pensamento. 

Há muitos anos que é viúva. O marido foi engolido pelo mar quando Celeste tinha trinta anos e o seu filho cinco. Teve de criá-lo sozinha. Dedicou-se à costura, oficio que a mãe lhe ensinou quando Celeste não querida saber de agulhas, mas sim de namorados. 

Nunca teve uma vida feliz, mas sim conformada. Nunca saiu do seu distrito. O mundo que conhece é o da sua vila. A vida foi passando num piscar de olhos e Celeste nunca teve grandes ambições, mesmo para o seu filho. Nunca lhe incutiu um espírito aventureiro e não o deixou ir estudar para fora da sua capital de distrito. Conseguiu-o fazendo alguma chantagem emocional com o moço, que sempre foi bastante dependente da mãe. Mas pagou-lhe os estudos, com esforço e horas de trabalho extra viu o filho formar-se em economia. 

Hoje, ao jantar, Dona Celeste irá receber uma notícia que aquecerá o seu coração. Vai descobrir a alegria da palavra avó. 

IMG_20171118_085158_695.jpg

 

 

 

 

 

08
Nov17

O Renato

C.S.

- Vai para a puta que te pariu!

A frase ecoa-lhe na cabeça, uma e outra vez, uma e outra vez, uma e outra vez... Até que as palavras percam o significado.

 

Renato tem 9 anos e ouviu a frase pela primeira vez. Foi-lhe dirigida a si, com toda a violência que as palavras podem conter, porque vinha distraído a contar as moedas que tinha na carteira e esbarrou, sem querer, num miúdo mais velho. Pediu desculpa, mas de nada lhe serviu. O outro olhou-o com desdém e usou o imperativo no seu tom mais agressivo ao mesmo tempo que concentrou toda a sua força nas mãos para empurrar Renato, que acabou por cair aparatosamente no chão.

 

Renato tinha vontade de contar à mãe, quando chegasse a casa, mas seria incapaz de lhe reproduzir o vocábulo usado e como não sabia o que havia de fazer para acalmar os sentimentos maus que se apoderavam dele, chorou. Chorou muito, escondido na casa-de-banho, onde ninguém o pudesse ver. Os seus pais eram, sem dúvida, as pessoas de quem mais gostava no mundo e sentiu uma tremenda injustiça por a mãe ser ofendida assim, despropositada, violenta e amargamente, em pleno recreio.

 

Após ter chorado as suas frustrações e inseguranças Renato traçou um plano: iria falar com a sua professora sobre o que lhe tinha acontecido. Os pais sempre o haviam ensinado a agir perante alguma injustiça e era isso mesmo que ele tinha decidido fazer. Não iria denunciar o seu colega, não o queria punir, mas sim instruir. Assim, Renato, aos 9 anos, foi o impulsionador, na sua escola, de uma campanha bem sucedida contra o bullying e a violência nos recreios.

 

Não sabia o Renato que aquele episódio iria marcar a sua vida para sempre, já que o sentido de justiça nunca mais o abandonou e ele tornou-se no melhor juiz que poderia ser.

26
Out17

A C.S.

C.S.

Eu sou do Alentejo.

As planícies alentejanas serão para sempre uma paisagem à qual não consigo ficar indiferente. Tenho 31 anos, 7 dos quais passados no Algarve. O mar sempre fez parte de mim, ainda antes de tê-lo diariamente.

Provenho de uma família humilde. Os meus pais têm a 4.ª classe, como antigamente se dizia. São jovens. Estão ambos abaixo dos 55 anos. Foram eles que me ensinaram muito do que sei. Foram eles que me incutiram os valores que considero essenciais. Foram eles que me proporcionaram muitas das coisas que tenho.

A minha irmã partilha comigo muitos interesses, mas na generalidade somos muito distintas. Fomos o cão e o gato. Agora já somos mais a unha e a carne.

Sempre fui sociável e as pessoas reconhecem-me com facilidade por dois motivos: o sorriso e o cabelo. Tenho o choro fácil e a gargalhada mais fácil ainda.

Adoro a vida e todos os dias alimento novos sonhos. Sou genuinamente otimista, porque creio que viver com medo do que possa acontecer é uma tremenda perda de tempo. Mas tenho medos, como toda a gente.

Tive uma adolescência feliz. Conheci o amor na escola, mas só anos mais tarde é que o descobri verdadeiramente.

Casei e casava-me novamente, porque foi incrível e porque creio que o tempo nunca andou tão rápido como naquele dia 20.

Tenho amigas e tenho saudades delas. Vivem longe e estamos demasiado tempo sem nos ver.

Gosto de programas caseiros, mas nada me faz mais feliz que fazer a mala para ir a um lugar onde nunca estive.

Fascina-me o desconhecido e a surpresa da descoberta. O contacto com as pessoas e as suas vivências.

Não gosto de pensar que os melhores anos da minha vida foram os que já passaram.

Adoro gestos simples e pequenos momentos que se agarram à nossa memória para sempre.

Tenho mais respostas agora do que tinha há 10 anos, mas também tenho muito mais perguntas para as quais ainda não encontrei resposta. E está tudo bem.

(Imagem aqui)

 

16
Out17

O Dr. Guilherme

C.S.

Naquele início tarde, de um outono demasiado quente, Guilherme não imaginava o que lhe iria acontecer. Vinha de um agradável almoço com a sua filha mais velha, que iria casar-se no final do ano. Estava entusiasmado pela sua menina, que na verdade já era uma mulher deslumbrante e bem sucedida. Iria casar-se um ano depois de ter terminado o seu internato em pediatria. Um sonho tornado realidade. Desde muito cedo que a sua Lara quis seguir-lhe as pisadas no mundo da medicina, facto que sempre o encheu de orgulho.

 

Guilherme entrou no metro em passo apressado, verificando a sua agenda no smartphone, pois ainda o esperavam no consultório para cinco consultas e uma delas era com a sua paciente, grávida de gémeos, cuja tensão arterial o preocupavam.

 

Subitamente uma dor no peito. Lancinante. Soube de imediato do que se tratava e enquanto tentava racionalizar o que lhe estava a acontecer, o seu corpo começou a ceder, não conseguiu avançar muito mais, a dor cada vez maior e mais real. O seu corpo de 1,86m caiu ao chão. Os olhos fixos no teto daquela paragem de metro que fazia parte do seu dia-a-dia.

 

Pensou no casamento da filha e na dor que lhe causaria se não a pudesse acompanhar ao altar. Pensou no amor da sua vida, a mulher com quem partilhava a sua vida há quase quarenta anos. Queria tanto puder vê-la uma última vez, sentir o seu cheiro e acariciar os seus cabelos. Pensou no seu Tiago a viver sozinho pela primeira vez e logo num país estrangeiro. Queria visitá-lo de surpresa no início de dezembro, mas talvez não o voltasse a ver.

 

De repente sente umas mãos a comprimir-lhe o peito, uma e outra vez, uma e outra vez, ritmadas, enquanto ouve uma voz desesperada que lhe pede para se aguentar. Guilherme gostava de poder acalmar aqueles olhos verdes que se debruçam sobre ele e que lhe parecem estranhamente familiares. Tão bonitos. Tão puros. Tão tristes.

 

Antes de desmaiar compreende... Lamentavelmente, compreende que é a sua filha, a sua pequena Lara que no chão do metro, lavada lágrimas, faz os impossíveis para o agarrar à vida. Desculpa, Lara.

IMG_2874.jpg

(A magnífica foto que inspirou este conto é da autoria do João Freitas Farinha. É uma obra de arte, não é? Estes tons de preto e branco fascinam-me. Obrigada, João.)

 

03
Out17

O Bernardo

C.S.

Sou o Bernardo e sinto-me desconfortável quando olham diretamente para mim. Nunca pensei ter de recorrer a um psicólogo, mas aqui estou. Bastante cético quanto ao bem que isto me possa fazer... Na verdade, venho mais pelas pessoas que me pediram para o fazer do que por mim. 

 

Olho o relógio. São 16:30. A esta hora deveria estar a preparar-me para deixar o escritório e ir buscar o meu filho à escola. Baixo a cabeça e um vazio enorme apodera-se de mim. As mãos tremem-me. Tenho 43 anos e as mãos tremem-me e eu não compreendo nada do que se passa à minha volta.

 

Sei que a esta hora a minha mulher está em casa. Provavelmente a sentir-se perdida, como eu, mas não o posso garantir. Há meses que praticamente não falamos. Somos dois fantasmas presos dentro da nossa própria casa. Uma moradia. Virada a sul, com três quartos, grandes janelas e uma piscina. Tal como ela sempre quis.

 

Tudo me parece distante agora. Comprámos aquela casa há 10 anos, quando fui promovido, dois anos antes do José nascer e, no entanto, aquela casa e os sonhos de então parecem ter pertencido a outras pessoas que não nós. 

 

Envelheci imenso nos últimos meses. A Paula também. Deixei o ginásio, perdi peso, clientes e a vontade de viver. Ainda gosto da Paula, mas não sabemos como nos encarar. Não sabemos como conviver. Há dúvidas e rancor no ar. Há meses que durmo no sofá do escritório, não que ela me tenha pedido, mas foi algo que senti que devia fazer. 

 

A dor consome-nos. Os dias passam e parecem sempre iguais, ainda que uns dias fiquemos deitados até à hora de almoço. Não por sono. Não por preguiça. Simplesmente porque não sabemos o que fazer quando colocarmos os pés no chão. 

 

Sei que a Paula deverá estar a viver sentimentos idênticos aos meus. Sei que também ela se consome, mas não encontramos forma de nos olhar e tentar compreender. Não há nada que possamos compreender neste enorme absurdo que se tornou a nossa vida. 

 

Tenho 43 anos e tive um filho. Houve um tempo em que tive um filho. José. 8 anos. Terá para sempre oito anos o meu filho. Passaram-se meses desde que o abracei pela última vez. Era o miúdo mais bem disposto que conheci até hoje. Adorava animais, o Benfica e o espaço, sabia mais que eu sobre planetas e constelações. Sonhava muito, mas reparava no mundo à sua volta. 

 

Um dia acordei pai e a Paula acordou mãe. Uma manhã igual a tantas outras. Fomos trabalhar e ele foi para a escola. Ao fim do dia eu e a Paula já não éramos pais. Éramos uma sombra do que fôramos. 

(Imagem aqui

E nada disto faz sentido. O mundo avança e não deveria avançar. Não sem ele. Não sem justiça. 

 

19
Set17

A Adelaide

C.S.

Adelaide deixa-se cair sobre a cama, exausta, ainda com os sapatos de salto calçados, que hoje parecem ser feitos de chumbo. O seu minúsculo T1 está em absoluto silêncio, não se ouvem as correrias dos miúdos que vivem no andar de cima, nem as discussões conjugais que lhe chegam, todos os dias, vindas do 2.º esquerdo. 

Fecha os olhos e tenta recuperar as forças. Quase que adormece, mas subitamente põe-se de pé. Quebrou, por momentos, a sua própria regra: não se aproximar da sua cama com roupas vindas da rua, sobretudo se chega do trabalho. 

Agora terá de limpar todo o quarto e mudar os lençóis, claro está. Amaldiçoou-se por ter sido descuidada, mas conhece-se suficientemente bem para saber que se não proceder àquela limpeza não conseguirá dormir.

"Como pode ser irónica a vida..." - pensa, enquanto vai puxando a colcha e depois os lençóis.

Adelaide mete mãos à obra, sem vontade, mas com determinação. Não tarda o seu T1 estará a brilhar.

Não tem orgulho no que faz para ganhar a vida, por isso não deixa que as impurezas do exterior contaminem o seu espaço. Razão pela qual estabeleceu regras para si própria. Sempre que chega a casa troca de roupa, mas não sem antes tomar um banho demorado, esfregando todas as partes do seu corpo, como se estivesse a proceder a uma desinfestação. 

Já deixou de se martirizar pelo que faz. Aprendeu a aceitar o seu destino. Mas ainda lhe custa. Todos os dias lhe custa, ainda que o seu rosto já não o deixe transparecer. 

Agarra-se aos seus sonhos. À ideia de um dia poder voltar aos estudos, formar-se e começar do zero. Tem 23 anos e começou a trabalhar aos 16. Fugiu da casa onde era maltratada todos os dias, pelo padrasto, sem que a mãe fizesse qualquer esforço para o controlar. Julga que nunca a terão procurado, facto que, ainda que lhe tenha doído ao início, se revelou um alívio. 

Viveu nas ruas. Mendigou algum tempo e sentiu-se a pior pessoa do mundo, até que um dia a Dona Ritinha a encontrou. Ofereceu-lhe sopa quente e uma cama, algumas roupas novas e conhecimentos sobre como deveria aproveitar melhor o seu corpo.

Na noite seguinte começou a trabalhar. O seu primeiro cliente foi um sexagenário endinheirado, que cheirava a vinho e que tinha um dente de ouro. 

Adelaide não se recorda do nome dele, mas ainda hoje tem pesadelos com aquele homem. Depois de se ter entregue a ele, de se deixar usar por duas vezes, num estado de semiconsciência, ele deixou-a na mesma cama velha onde Ritinha a tinha mandado "tratá-lo com carinho, pois era um cliente habitual" e desapareceu. Ela ficou a sentir-se suja, pegajosa e malcheirosa. Chorou toda a noite e compreendeu, naquele momento, o significado da palavra solidão. 

A partir daí soube que estava completamente por sua conta e risco. Que tinha de cuidar de si, já que mais ninguém o faria. Continuou a vender o corpo porque ganhava um bom dinheiro, mas nunca deixou de lhe custar, simplesmente aprendeu a viver com isso. Foi traçando pequenos planos para si. Trabalhando para atingir pequenas metas. 

Conseguiu sair da casa da Dona Ritinha, que lhe ficava com 75% do que ganhava. Dividiu um quarto com uma colega de profissão durante algum tempo, depois conseguiu ter um quarto só para si e hoje vive no seu T1, que mantém impecavelmente limpo.

Sonha cada vez mais e melhor para si. Apesar de se sentir cada vez mais cansada. 

(Imagem aqui)

31
Ago17

A Marta

C.S.

22h35

Ouço a chuva, ao longe. Miúda. Ritmada.

Algo em mim estremece. Inspiro. Uma e outra vez e cada vez mais fundo e procuro afastar o pensamento que não me sai da cabeça.

Fecho os olhos, com força. Mas a imagem que vi não se dilui.

 

- Marta! Marta! Marta!...

 

Alguém chama por mim. Alguém que já deu pela minha falta. Sinal de que não resta muito tempo até que me encontrem. Obrigo o meu corpo a mover-se. Cambaleia. Concentro-me. Tenho de sair daqui. Afastar-me.

Começo a correr, nunca fui grande corredora, mas a adrenalina que sinto parece ajudar-me. Corro sem olhar para o que me rodeia, não sei para onde vou, mas sei exatamente do que fujo.

Sinto as mãos molhadas e sei que se olhar para elas estarão sujas de sangue.

 

00h30

A minha bebé está desaparecida. Passaram cerca de três horas desde que ela desapareceu, mas é impossível não pensar nos piores cenários.

A Marta. A minha Marta. Uma filha extremamente amorosa, uma aluna exemplar, querida por toda a comunidade escolar. Até aos 14 anos um sonho de menina. E depois tudo mudou. Deixei de a reconhecer. Ela própria foi-se abandonando aos poucos, até restar apenas uma sombra do que fora.

A minha Marta. Tem hoje 20 anos, a minha bebé.

Talvez a culpa seja nossa. Talvez seja minha, eu que sou a mãe, deveria ter compreendido mais cedo. Deveria ter lido os sinais. As mães deveriam estar aptas para captar este tipo de coisas.

 

- Júlia. Júlia!

 

01H12

A Marta está bem, por agora.

Foi levada para o hospital e os pais estão a ser aconselhados a deixá-la lá por alguns dias, quem sabe se não serão mesmo algumas semanas.

Dói-lhes entregar assim a filha, pois nunca antes estiveram sem ela, mas Júlia sabe que o que aconteceu hoje pode repetir-se. Sabe também que a Marta anda a fugir cada vez mais à medicação. Chora. Sente-se culpada e impotente. O marido abraça-a, também ele sem forças.

Ambos se recordam bem do dia em que a Marta foi diagnosticada com esquizofrenia. Foi há dois anos atrás. Num estranho e frio mês de março e a vida deles nunca mais foi a mesma.

Muitos dos seus sonhos ficariam por concretizar. Ficaram atónitos. Não aceitaram. Pediram uma segunda, terceira e quarta opinião. Todas iguais. A mesma sentença.

Eles que planearam a brilhante vida da sua bebé foram atirados de um precipício. Pelo menos era o que sentiam.

Todos os dias.

 

(Imagem aqui)

 

 

 

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