O Fernando
Fernando ia sentado no comboio, absorto nos seus pensamentos, mas sobretudo nas suas angústias. Regressava a casa numa hora que não era de ponta, facto que não invalidava que o comboio fosse bastante composto.
Se alguém perdesse um pouco do seu tempo, naquele final de tarde gélido, e reparasse na postura de Fernando, rapidamente repararia que ele era a figura de um ser humano derrotado. Vencido pela vida, era assim que Fernando se havia sentido nos últimos anos. Às vezes, quando o pessimismo não o consumia por completo, Fernando tentava dar algum sentido à sua existência, mas deixava-se vencer demasiado rápido.
É verdade que a vida não havia facilitado as coisas para Fernando. Tinha uma cara comum e só a cor dos seus olhos constituía um traço distintivo, eram de um verde azeitona profundo. Havia herdado os olhos da mãe que o abandonou quando ele tinha três anos de vida e o mundo todo por descobrir. Esse acontecimento fez com que Fernando usasse fralda até muito mais tarde do que era suposto.
Fernando ficou aos cuidados do pai, que sempre se esforçou para que nada lhe faltasse, mas que era escasso em demonstrar afeto. Até entrar para a escola passava os dias com a avó paterna, uma senhora que cheirava sempre a tabaco e que dividia a sua casa com cinco gatos. Garantia que a comida não faltava ao neto, mas todo o cuidado que tinha para com ele não passava disso mesmo.
Na escola Fernando era um aluno mediano e tinha dificuldade em fazer amigos. Fazia muitas conversas na sua cabeça, mas era quase sempre incapaz de as concretizar. Os professores pareciam não reparar muito nele, pois não arranjava conflitos e não tinha notas que o colocassem nos extremos. Era quase esquecível. Amou pela primeira vez no 10º ano. Bruna. A única rapariga que um dia lhe disse que ele tinha os olhos bonitos.
Após concluir o secundário, Fernando entrou no mundo do trabalho, exatamente no mesmo ano em que o seu pai adoecera e falecera. Perdeu a única pessoa que parecia preocupar-se com ele minimamente. Fernando ficou entregue a si próprio.
Trabalhava com afinco, era cumpridor e pontual, nunca faltava. Na sua cabeça haviam questões que o assombravam uma e outra vez, uma e outra vez, uma e outra vez... "Para que sirvo? O que ando cá a fazer? Se morrer ninguém sentirá a minha falta.".
Foi imbuído nestes pensamentos que Fernando decidiu que no dia em que fizesse 30 anos celebraria colocando fim à sua existência.
Era hoje, 14 de novembro, Fernando ia para casa para celebrar como havia prometido a si próprio.
O comboio parou. Ainda faltavam quatro paragens para o destino final. Fernando sentiu uma mão pousada no seu braço, piscou os olhos antes de virar a cabeça ao ouvir:
- Fernando? - questionou uma voz doce e confusa.
Fernando tinha a certeza que não era com ele que falavam. Nunca era, por isso encarou-a com os seus olhos verdes cheios de perplexidade e não conseguiu sequer soltar um som.
- Fernando? És tu! És mesmo tu. - a voz da rapariga parecia entusiasmada e Fernando sentia-se a ter uma experiência fora do corpo.
- Sou eu, a Bruna. Lembraste de mim? Fomos colegas no liceu, no 10º ano, mas eu depois mudei de escola...
- Bruna? - interrompeu-a Fernando, quase em surdina.
Lembrava-se. Claro que se lembrava. Como podia havê-la esquecido? Estava mais bonita que nunca. Sempre tivera um sorriso doce.
- Sim, sou eu. Que surpresa encontrar-te aqui. Como estás? - questionou ela casualmente.
Que poderia ele responder? Não podia admitir que ia a caminho de casa para colocar em prática o seu plano de suicídio. Em vez disso disse-lhe:
- Julguei que nunca mais te iria encontrar.
- Foi pena eu ter mudado de escola. O meu pai arranjou um novo trabalho, tivemos de mudar de casa. Eu gostava tanto de ti... - admitiu ela enquanto sorria e um rubor cobria-lhe as faces.
Fernando estava em choque. Sentiu uma descarga no seu corpo. Nunca ninguém lhe havia dito que gostava dele. E não esperava que a pessoa que o fizesse fosse a rapariga mais bonita e simpática que pisava o planeta Terra.
Aos poucos o seu plano ia-se desvanecendo. Fernando sorria, parecia ter voltado à vida ainda antes de morrer.
(Imagem aqui)