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há mar em mim

20
Ago18

A Teresa

C.S.

"Hoje é o primeiro dia do resto da tua vida..." Estas eram as palavras que não conseguia tirar da cabeça desde os acontecimentos da noite anterior. Tinha a voz de Sérgio Godinho a repetir a frase em loop na sua cabeça e nunca gostara muito de o ouvir, apreciara muito mais o Rui Veloso ou o Palma, porém não eram eles que a visitavam nestas horas de angústia.  

 

"Hoje é o primeiro dia do resto da tua vida..." Teresa perguntava-se, agora, se realmente estaria perante o primeiro dia do resto da sua vida ou se seria o seu primeiro dia enquanto fantasma, sombra, aparição... Ou outra coisa qualquer que lhe queiram chamar. Sim, porque a verdade é que Teresa sentia que tinha morrido na noite anterior. 

 

"Hoje é o primeiro dia do resto da tua vida..." - Pois então que seja! Que seja, raios! 

Teresa já descera ao inferno mais do que uma vez e sabia que agora estava condenada, não haveria retorno. Nas últimas dez horas passara por sentimentos completamente opostos. Sentira-se feliz e aliviada por momentos, depois foi tomada pelo medo e pelo desespero  que a levaram a esgotar todo o seu stock de lágrimas. Chegada a esse ponto, foi quando Teresa começou a ouvir a música - "Hoje é o primeiro dia do resto da tua vida..." - queria fugir, mas não sabia para onde. Não havia planeado nada daqueles acontecimentos e acontecera tudo tão rápido que ela ficara ali presa, sem saber o que poderia fazer a seguir. O minúsculo T0 cheirava-lhe a morte e sabia que havia sangue um pouco por todo o lado, talvez até em si. Sabia que se tentasse fugir seria imediatamente apanhada, assim como sabia que não poderia ficar fechada para sempre num cenário de um crime. Seria agora uma criminosa? Como pode alguém passar de vítima a criminosa numa questão de segundos?

 

"Hoje é o primeiro dia do resto da tua vida..." Hoje seria, efetivamente, o primeiro dia, em três anos, que ninguém lhe chamaria puta. Talvez lhe chamassem assassina, mas não puta. Hoje não lhe diriam que não sabe fazer nada, porque afinal até soube espetar uma faca no pescoço dele. Ele que agora parecia um pedaço de carne descolorado. Como pôde ela temê-lo tanto e por tanto tempo?, perguntava-se. Quantas vezes rezara baixinho para que, depois do trabalho, ele apenas a insultasse e, quanto muito, se ficasse por umas chapadas. Isso aprendera a tolerar, mas quando ele decidia pontapeá-la o mundo abatia-se sobre si. Muitas vezes, tantas!, ele só parava quando ela perdia os sentidos. Teresa nunca pensou que conseguiria aguentar tanta dor, mas de alguma forma o seu corpo era mais resistente do que aparentava. 

 

Em quarenta e um anos Teresa fora maioritariamente infeliz. Com ele lembra-se de ter vivido uns meses de felicidade. Pura. Inocente. Havia, então, acreditado que poderia ter a família com que sempre sonhara. Talvez um ou dois filhos. Mas esses meses foram-se transformando. Esfumando. Até deles não restar nada. E Teresa foi engolida por um mundo de temor e dor constantes. 

 

"Hoje é o primeiro dia do resto da tua vida..." Talvez seja. Farei a chamada. Marcarei o número. 112. Não custa nada. Hoje, pela primeira vez, pedirei ajuda. 

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(Imagem aqui)

22
Fev18

A Inês

C.S.

Conduzia sem rumo há mais de uma hora. A raiva, o desespero e uma tristeza profunda tinham tomado conta de si nos primeiros quarenta minutos. Os olhos ardiam-lhe devido às lágrimas que havia derramado. 

Passavam das 19h.

Agora senti-se vazia, como se tivesse ficado oca por dentro. O corpo ardia-lhe. Não sabia onde aquela estrada a levaria, nem sabia se teria forças para parar. Haviam-lhe puxado o tapete. Sem avisos prévios. Nessa tarde a vida havia-lhe dado uma enorme bofetada. Não sabia o que fazer. Só de pensar em relatar a alguém o que lhe acontecera ficava nauseada. Desejava a todo o custo acordar. Acordar do pesadelo que estava a viver. 

O telemóvel tocou. Pousado no banco do passageiro o telemóvel tocava despreocupadamente. Inês não o ouviu. Não viu que era o Afonso quem lhe ligava. Afonso que já estava em casa, longe, muito longe de imaginar o que acontecera à sua namorada, apenas queria saber se podia encomendar o sushi para as 20h. 

Por essa altura Inês mudou abruptamente de direção, precisava de sair do carro. Parou junto à praia. Correu pela areia como se alguém a perseguisse e entrou no mar. Precisava de lavar-se. Precisava de tirar de si os vestígios daquele ser imundo com quem trabalhara até hoje. Precisava de esfregar até à exaustão cada pedaço da sua carne em que ele havia tocado. Sentia-se suja, imunda mesmo. Pensava que jamais iria esquecer o bafo dele no seu pescoço, a força com que a empurrou, as suas mãos gigantes e impuras a tocar cada centímetro da sua pele. 

Inês não se reconhecia. O seu chefe não a havia somente violado, havia-lhe roubado a crença nos outros, havia-lhe tirado a jovialidade do olhar e o sorriso constante. Inês foi violada e corrompida. Física e psicologicamente Inês havia sido transformada para sempre. 

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(Imagem aqui)

08
Nov17

O Renato

C.S.

- Vai para a puta que te pariu!

A frase ecoa-lhe na cabeça, uma e outra vez, uma e outra vez, uma e outra vez... Até que as palavras percam o significado.

 

Renato tem 9 anos e ouviu a frase pela primeira vez. Foi-lhe dirigida a si, com toda a violência que as palavras podem conter, porque vinha distraído a contar as moedas que tinha na carteira e esbarrou, sem querer, num miúdo mais velho. Pediu desculpa, mas de nada lhe serviu. O outro olhou-o com desdém e usou o imperativo no seu tom mais agressivo ao mesmo tempo que concentrou toda a sua força nas mãos para empurrar Renato, que acabou por cair aparatosamente no chão.

 

Renato tinha vontade de contar à mãe, quando chegasse a casa, mas seria incapaz de lhe reproduzir o vocábulo usado e como não sabia o que havia de fazer para acalmar os sentimentos maus que se apoderavam dele, chorou. Chorou muito, escondido na casa-de-banho, onde ninguém o pudesse ver. Os seus pais eram, sem dúvida, as pessoas de quem mais gostava no mundo e sentiu uma tremenda injustiça por a mãe ser ofendida assim, despropositada, violenta e amargamente, em pleno recreio.

 

Após ter chorado as suas frustrações e inseguranças Renato traçou um plano: iria falar com a sua professora sobre o que lhe tinha acontecido. Os pais sempre o haviam ensinado a agir perante alguma injustiça e era isso mesmo que ele tinha decidido fazer. Não iria denunciar o seu colega, não o queria punir, mas sim instruir. Assim, Renato, aos 9 anos, foi o impulsionador, na sua escola, de uma campanha bem sucedida contra o bullying e a violência nos recreios.

 

Não sabia o Renato que aquele episódio iria marcar a sua vida para sempre, já que o sentido de justiça nunca mais o abandonou e ele tornou-se no melhor juiz que poderia ser.

07
Nov17

Eu tinha razão em não querer saber

C.S.

Ouvi e vi na tv e na internet, durante todo o fim-de-semana, referências a acontecimentos violentos que ocorreram numa discoteca em Lisboa. E sempre que o tema veio ter comigo eu evitei-o.

 

Porquê? É simples. Estou cansada de violência. É algo que aumentou exponencialmente nos últimos anos, pelo menos é assim que eu o sinto. E não, não me refiro só aos atentados, que por enquanto ainda vão acontecendo além fronteiras. Se bem que eu sinto-os já aqui, mas adiante... Refiro-me também ao nosso país, à nossa cidade, à nossa rua... A violência está a tornar-se banal e isso é assustador.

 

Assusta-me que estejamos a habituarmo-nos a um nível tão grande de violência ao ponto de deixarmos de sentir compaixão. Vejo-o por aí... Vejo-o nos mais novos. E é aterrador.

 

Evitei as notícias sobre a discoteca Lisboeta, porque me é fácil imaginar o que terá acontecido, pois já não foi a primeira vez. Todavia, ontem ao jantar eu e o A. conversávamos despreocupadamente, sobre tudo e nada, até que ele diz:

- Vi imagens sobre aquilo que aconteceu no Urban.

Ainda não tínhamos mencionado o assunto cá em casa e eu deveria ter ficado caladinha, mas disparei:

- Ah sim?! E então?

Estava a jantar e não estava preparada para o breve relato que veio a seguir. Ainda que ele não tenha aprofundado grande coisa, porque já sabe como eu sou. Ainda assim, um arrepio percorreu-me o corpo ao ouvi-lo e, imediatamente, lembrei-me de um filme que jamais esquecerei devido à violência nele contida: América Proibida. Esta lembrança e o saber que há gente aqui tão perto disposta a tamanhas barbaridades deixou-me com os olhos rasos de água.

 

Sou tola, eu sei. Mas sempre que puder vou evitar a violência o mais que possa. Não é que queira viver num mundo ilusório, é que a realidade dói-me.

(Imagem aqui)

24
Abr17

Este vídeo tem de ser visto por todos!

C.S.

Uma menina de 17 anos, espanhola, a frequentar o ensino secundário decidiu fazer uma curta metragem para entrar num concurso da sua escola, Alicia Ródenas Sánchez, assim se chama ela, utilizou um texto de Ro de la Fuente que fala sobre a violência machista a que todas as mulheres são sujeitas. 

Do alto dos seus 17 anos, Alicia fez uma interpretação poderosa, incapaz de deixar seja quem for indiferente e ainda bem, porque esta temática merece toda a atenção que lhe possamos dar. 

 

Assistam com atenção e digam-me de vossa justiça. 

 Ahora o Nunca

 

 

 Alicia, a câmara e um fundo escuro são quanto baste para nos prender e angustiar ao longo de pouco mais de 5 minutos. 

 

Deixo-vos aqui algumas frases por ela proferidas e livremente traduzidas (agora) por mim:

«Tão engraçados, os miúdos, a levantar as saias, são coisas de miúdos.»

«Não sejas tão bruta a brincar, pareces um menino.»

«As meninas não gritam, cala-te!»

«Se te veem a brincar com os rapazes vão chamar-te Maria-Rapaz.»

«Deixa de queixar-te!»

«Assim vestida pareces uma puta.»

«O que é que se passa? Estás menstruada?»

«Vomitas para emagrecer? Que superficial, a beleza está no interior.»

«Olha, olha a gorda. Vai àquela. São mais fáceis porque estão desesperadas.»

«Fodes com todos. Puta!»

«Não queres ser mãe? És demasiado jovem para saber. Vais perder o mais importante da tua vida.»

«O que há para jantar? O que há para comer? Onde estão as toalhas? Não me passas-te a camisa?»

«Esse tipo trata-te bem, o que é que queres mais?»

«Para de chorar que já! Que já és grande.»

«Se não fosse eu, tu não eras nada!»

«Não me deixes ou mato-te!»

 

 

 

 

 

 

 

15
Fev17

Realidades que eu não compreendo

C.S.

Ontem, dia dos namorados e de celebrar o amor, foi revelado o resultado de um estudo feito aos jovens portugueses. 

 

A que conclusões chegaram?

"Um em cada quatro dos inquiridos acha aceitáveis atos de violência física, psicológica e sexual numa relação." (retirado daqui)

 

Eu leio e vejo estas notícias e fico parada a olhar para o ecrãn. Sinto um vazio. Uma pergunta forma-se na minha cabeça vezes sem conta: "Como é isto possível?". 

Tenho a sensação, nada agradável, de que fiz uma viagem no tempo. Terei recuado uns cem anos?!

 

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(Imagem aqui

 

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